SIGI: o decalque de um desenho espanhol com algumas arestas a limar

Nuno Santos e Tiago Oliveira CMS
Cedida

A indecisão durava há demasiado tempo, e foi entre recuos e avanços que, finalmente (para muitos), 2019 iniciou-se com a certeza de que os vulgarmente conhecidos como REITs (Real Estate Investment Trust) passariam a ter espaço no mercado português. Apresentam-se com a denominação de SIGI (Sociedades de Investimento e Gestão Imobiliária), e as suas principais caraterísticas – mas também fragilidades – começam agora a ser conhecidas e exploradas, desde que a 1 de fevereiro o  Decreto-Lei nº 19/2019, de 28 de janeiro entrou em vigor.

Porque a comparação é sempre um bom ponto de partida para analisar algo de novo, em entrevista à Funds People Portugal, Nuno Figueirôa Santos e Tiago Valente de Oliveira, advogados da CMS Rui Pena & Arnaut, começaram por lembrar como foi a implementação das homólogas SOCIMI em território espanhol. “Em Espanha existiu um lado falhado no projeto dos REITs. Estes saíram em 2009, mas não tiveram qualquer aplicação prática; só em 2012 com uma revisão fiscal e da própria composição, é que estes passaram a ter sucesso”, introduziu Tiago Valente de Oliveira, mostrando a ambição inicial do projeto espanhol. “No início existia um capital social mínimo em Espanha de 15 milhões de euros, que viram que era demasiado exigente; diminuíram o capital social mínimo para os 5 milhões que é o mínimo que as SIGIs também adotaram”, prosseguiu. O número de SOCIMI constituídas em cada um dos períodos reflete precisamente o antes e o depois da reforma: entre 2009 e 2012 foram criadas 0 SOCIMI, enquanto que a partir da revisão de 2012 os veículos “começaram em pleno vigor”.

Uma das especificidades do regime aplicado em Espanha e que, no entender dos dois advogados pode perfeitamente ganhar importância no mercado nacional, é o enfoque, “com sucesso”, na área hoteleira. “Estas sociedades nestas áreas fazem uma dissociação da detenção do ativo propriamente dito e da gestão e exploração hoteleira em si. O que acaba por acontecer é que existe uma SOCIMI onde depositam o imóvel, sendo depois celebrado um contrato de gestão hoteleira onde conseguem fazer uma dissociação entre o lado imobiliário e operacional do negócio. Conseguem, portanto, ter um grupo de investidores um pouco mais ativos que têm a parte da detenção do imóvel, e depois o gestor turístico como alguém do métier”, explica Tiago Oliveira. Não só se separa o “teor” de cada uma das atividades, como também do “ponto de vista da gestão das responsabilidades” há uma dissociação, como acrescentou Nuno Figueirôa Santos.

O que une e separa os SIGI dos OIC e OII

Apesar de as SIGI configurarem um veículo inovador, na opinião dos dois advogados “pode concluir-se que os SIGIS têm um regime fiscal idêntico aos OICs, ou seja, não seria por aí que existiria alguma vantagem em investir nestes novos veículos”.

A vantagem pode residir sim noutro ponto: a inexistência de uma sociedade gestora. “Notamos que o facto de um fundo de investimento imobiliário exigir a presença de uma sociedade gestora e exigir a supervisão da CMVM, afasta alguns investidores que querem comprar o imóvel que está entregue a uma gestora que eles não reconhecem. Entre sociedade gestora e investidor acabam por existir alguns focos de tensão. Achamos que as SIGIs vão ajudar a limitar este tipo de receio que os investidores têm”, enfatizou Nuno Santos. Acresce, para Tiago Oliveira, o facto de as SIGI se tratarem de “uma sociedade anónima que tem um conselho de administração próprio e cuja função executiva será exercida por esse conselho de administração”, contrariamente ao que acontece com os fundos de investimento que se configuram como “património autónomo e que tem obrigatoriamente de ter uma sociedade gestora (que é quem em última análise assina os contratos em nome do fundo)”.

Outra das diferenças substanciais face a um fundo de investimento imobiliário prende-se com a diversidade de risco. Tiago Oliveira explica que nos “OII há uma diversidade de risco que tem de ser garantida, ou seja, uma exigência de que cada imóvel não represente mais do que X do ativo total, por exemplo – no caso dos OII Abertos 20% e no caso dos fundos OII fechados 25 % - enquanto nas SIGI não existe nenhuma exigência”. No que à limitação ao endividamento diz respeito, surge um número que desperta alguma curiosidade. “Nos OII Abertos existe uma limitação ao endividamento de 25%, nos fechados 33%, enquanto nas SIGI essa limitação é de 60%; isso é algo que não deixa de ser curioso, já que o preâmbulo afirma como pedra angular que o que se pretende com o veículo é algo simples que ponha em prática a máxima de ‘não queremos endividamento bancário, mas sim uma promoção dos capitais próprios das empresas’”, evidencia o advogado, falando de outra questão relevante. Este limite, prossegue, “acaba por abrir uma porta, sem distinção, entre capitais alheios e capitais próprios, o que comparando com os OII é uma diferença substancial”.  

“Aprimoração” face ao RGOIC

A não entrada dos imóveis onerados para a contabilização destes ativos é outra das “variâncias” face aos tradicionais fundos. “A este nível existe um regime relativamente diferente dos artigos do RGOIC. Nos termos do RGOIC não são contabilizados os imóveis que sejam onerados excessivamente, e, portanto, que dificultem excessivamente a alienação dos imóveis. Aqui – nas SIGI – embora não exista esse “excessivamente”, fecha-se um pouco o leque de exceções a essas onerações”, explica o advogado. Nas SIGI, portanto, “conseguem ter-se os imóveis onerados por garantias constituídas para a obtenção de financiamento para aquisição, construção ou reabilitação, coisa que no RGOIC não entra no nível de detalhe. Portanto, aqui há uma aprimoração relativamente ao regime do RGOIC”.

As limitações prosseguem face ao RGOIC, e também o objeto social das SIGI é mais “apertado”. Enquanto no RGOIC é aceite “uma aquisição de imóveis para revenda, por exemplo, aqui a ideia é mais de longo prazo, nomeadamente por três anos”, refere Tiago Oliveira. Esta é uma diferenciação face aos OIC que Nuno Santos sublinha como uma “grande diferença”, acrescentando o facto de nas SIGI existir a obrigação de “pelo menos 75% do valor total do ativo” ter que ser composto “por ativos afetos ao arrendamento ou algum tipo de exploração”. Desta forma, dentro do total de ativos da SIGI que pode caber a uma atividade especulativa está limitado um espaço de 25% do ativo do fundo. Portanto, o objeto social das SIGI acaba por ser “muito mais limitado”, o que, na opinião dos advogados, vai de facto ao encontro daquilo que o mercado necessita.

Reparos

A outra face da moeda também existe, e os dois especialistas apontaram alguns reparos que podem ser feitos ao texto das SIGI. Em termos fiscais, por exemplo, a questão da tributação poderia ter sido, de alguma forma, otimizada face aos fundos imobiliários. “Não existem diferenças entre as SIGI e os fundos imobiliários, ou seja, em ambos só há tributação à saída”, inicia. “Algo de diferente que poderia ter sido feito nas SIGI  - e que também não o é nos fundos – tem a ver com o facto de quando uma SIGI ou fundo imobiliário distribui para não residentes existir uma retenção na fonte de 10%, ao passo que nas distribuições de rendimentos para empresas ou para pessoas singulares portuguesas existe o mesmo tratamento que qualquer distribuição de dividendos feita por uma entidade portuguesa, ou seja, para uma pessoa singular 28%, e para uma pessoa colectiva 25% de retenção na fonte”, recorda.

Na opinião dos advogados, para uma verdadeira dinamização das SIGI internamente, e não apenas ao nível dos investidores internacionais, requerer-se-ia esse “esbater” da retenção na fonte. “Isso seria provavelmente um incentivo para que os próprios portugueses pudessem investir em imobiliário, e optassem por esta via”, concluem. A tributação à saída, contudo, justifica uma consequência prática: “Há uma imposição de que pelo menos 90% dos lucros sejam distribuídos anualmente” e, portanto, tributados também anualmente, contam.

Embora não se trate propriamente de um reparo, Tiago Oliveira deixou aquela que pode ser uma dúvida, mas também um ponto de reflexão nesta fase inicial de implementação dos veículos em Portugal. “Não sei se os 5 milhões de capital social mínimo não serão ambiciosos para o mercado português. Tal como Espanha fez um ensaio falhado de 15 milhões e depois ajustou para 5, não sei se aqui também não existirá essa necessidade. Com um capital social tão elevado exigido, há de facto outras formas de se capitalizar a sociedade para a compra de um imóvel. Veremos se não será exigente demais para o nosso mercado”, sumariza.