“Quem não souber enfrentar todos estes desafios ao mesmo tempo, vai ter o futuro fortemente condicionado”

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Vitor Duarte

Quais são as grandes tendências disruptivas que considera que podem impactar a indústria nacional de gestão de ativos?

A indústria de gestão de ativos global enfrenta desafios que têm o potencial para mudar radicalmente a sua natureza. Alguns destes desafios não são novidade: resultam de fenómenos que vão ganhando dimensão, como é o caso do peso da gestão passiva que já representa nos EUA 1/3 do total e na Ásia um pouco menos, estando na Europa ainda abaixo de 20%. A Moody’s prevê que, já em 2021, a gestão passiva venha a ultrapassar a gestão ativa nos EUA. Esta alteração, em pleno desenvolvimento, é extraordinariamente importante pelo impacto que tem na própria necessidade de existência de gestores e na natureza pró-cíclica que introduz no funcionamento dos mercados, sincronizando tudo e todos para cima ou para baixo independentemente do valor económico dos investimentos.

Outro desafio que desponta a par das incursões que a inteligência artificial vai fazendo em todos os domínios da atividade onde o homem – centro de tudo – era a peça essencial, é o robot advising que dispensa o exercício do juízo humano dos gestores sobre as decisões específicas de investimento. Hoje-em-dia há já brokers que recorrem a algoritmos para decidir sobre a compra ou venda de alguns ativos, dispensando a análise e a perspetiva humana. Ignorar o impacto deste movimento é totalmente irresponsável.

Mas também ao nível da comercialização as forças da concorrência, ajudadas pela tecnologia, irão mudar o status quo que sempre prevaleceu relativamente à importância  das redes de distribuição, nomeadamente das redes bancárias na Europa. Um dia acordaremos tendo no telemóvel todo o leque de Fundos disponível, numa realidade que colocará frente a frente os produtores de Fundos e os consumidores. Vale a pena refletir sobre como este caminho se irá fazendo.

A somar a todos estes desafios, temos a pressão dos Reguladores no exercício da atividade e em particular no resultado económico dessa atividade. Uma atividade já com pesadas exigências de compliance e com a perspetiva de limitações fortes nas comissões que poderá cobrar.

A quais deverá a indústria adaptar-se e quais poderão ser as grandes oportunidades?

Não vai haver direito a cherry picking. Quem não souber enfrentar todos estes desafios ao mesmo tempo, vai ter o futuro fortemente condicionado. As grandes oportunidades virão do facto de que, quem passar nestas provas, vai poder continuar a oferecer soluções de investimento e poupança à esmagadora maioria da população, um exercício de democracia económica que corresponde ao papel dos Fundos de Investimento.

Quais seriam as medidas que melhor poderiam impulsionar a poupança e investimento dos particulares em Portugal?

Em Portugal temos o hábito muito pernicioso de pensar que não vale a pena resolver os problemas porque, com o tempo, as coisas deixam de ser o que são. Temos a situação paradigmática da poupança nacional e da proteção das pessoas na reforma. Um país com enormes desequilíbrios demográficos, um país de velhos, vive tranquilamente com um modelo de proteção na reforma pay as you go, que é paga pelos trabalhadores ativos, que todos sabem serão cada vez menos ao contrário dos que é suposto receberam essa proteção, que serão cada vez mais. Como as autoridades públicas não se preocupam, as pessoas também não. É um crime consentido, cujas penas serão sofridas por quem cá estiver no futuro. Por agora, tudo bem.

O que pareceria lógico é que o Governo, escolhido pelos cidadãos para resolver os problemas que resultam de sermos uma entidade com interesses coletivos, deveria ser responsável e responsabilizado por ter a seu cargo a montagem dos estaleiros destas reformas e a prossecução das medidas adequadas. Entre estas, pode-se, naturalmente, incluir a introdução dos estímulos necessários para alterar o comportamento das pessoas, ou seja, benefícios fiscais relevantes. Até lá, assobiamos para o lado e fechamos os olhos. Somos, neste aspeto particular, um caso único na Europa.

Onde é que a indústria nacional aporta mais valor relativo face ao resto da Europa?

O facto de vivermos aqui, dá-nos algumas características que nos diferenciam das pessoas que vivem noutras jurisdições. Esta não é uma afirmação nacionalista. A humanidade é só uma, as diferenças genéticas entre europeus, asiáticos e africanos são irrelevantes e os riscos de sobrevivência da espécie afetam lusitanos e uigures da mesma forma. Especialmente relevante para os portugueses, o facto de poderem funcionar dentro de uma grande economia europeia. O facto de podermos procurar emprego, mercado e constituir empresas livremente por todo o Continente, dá-nos possibilidades que não sonhávamos até muito recentemente. Muda tudo. Mas ao mesmo tempo, para além da nossa consciência global e europeia, não podemos estar indiferentes ao que se passa com a sorte do vizinho do lado, com o industrial de Braga, com o produtor de queijos da Serra da Estrela e com os excelentes vinhos que uma multidão de novos vinicultores faz sair das terras lusitanas. É essa diferença que deve animar os gestores nacionais, mas também os Reguladores e o Legislador. O valor que a indústria nacional de fundos pode aportar na concorrência que vem da Europa é o conhecimento do valor do que nos é próximo, algo que os gigantes globais nunca terão no radar. O que o Governo fez recentemente, disponibilizando instrumentos (SIMFE, SIGI) para ligar a atividade nacional com o mercado de capitais, é essencial para o sucesso da nossa comunidade e deveriam ser relevantes também para os gestores nacionais. Esperemos que essas sementes sejam portadoras de frutos para bem de todos.

O que falta para que o mercado de GA nacional cresça em termos de ativos e entidades?

Num quadro em que os depósitos bancários são fortemente desincentivados pelo BCE, em que os depositantes recebem zero ou pagam mesmo por entregar dinheiro aos Bancos, falta uma explicação por que razão os Fundos de Investimento não constituem uma escolha prioritária para o pouco de poupança que ainda existe. É uma reflexão que compete ao universo financeiro nacional.

Como interpreta o impacto da recente avalanche regulatória no mercado nacional? Como espera que a regulação ESG produzida pela UE impacte o dia a dia das entidades nacionais?

O impacto regulatório dos últimos anos é no mínimo asfixiante. Na falta de capacidade para entender as verdadeiras causas da grande crise financeira que despontou em 2007, as autoridades, principalmente as europeias, mostraram um empenho sem limites para regular tudo e todos, num exercício que se revelou claramente exagerado. Só que, quem vive na Europa não tem outra solução senão agir em conformidade com um modelo que alguns burocratas sonharam que seria perfeito. Espera-se que tenhamos atingido o pico da insanidade e que a razão se possa ir impondo.

O tema da ESG tem uma natureza diferente, mas o risco de virmos a ser submetidos à mesma terapia, é muito grande. Creio poder dizer que o interesse de todos, gestores de ativos e demais profissões, é de sobreviver num planeta onde exista oxigénio e onde se possa viver fora do ar condicionado. Os interesses são naturalmente os mesmos para toda a gente e por todos compreendidos, menos para aqueles para quem a ciência não é a ferramenta essencial da humanidade, mas uma deriva intelectual gratuita. Nos milhares de milhões de seres à face da terra há naturalmente lugar para todos. Para os que dizem assim e o seu contrário. Mas convém que os homens do leme sejam gente responsável. Nós os Portugueses devíamos sempre ter presente o nosso D. Sebastião, que empolgando os sentimentos nacionais e religiosos, nos levou ao abismo em Alcácer Quibir.

Não vejo por isso que os gestores de ativos sejam por defeito refratários ao respeito de regras ESG. Mas que o risco existe de que sejam levantadas leis e regulamentos mais próprios de talibãs do que do mundo real, esse risco existe mesmo.