O olho de Hórus

Jorge Silveira Botelho BBVA
Vitor Duarte

Muitos analistas parecem mais excitados em escolher as letras do alfabeto romano que simbolizam cada um dos cenários económicos, do que propriamente em procurar explicar as razões fundamentais que sustentam os vários cenários de recuperação económica. Desde o L, W, U, V, ao Z, todos eles procuram explicar o que nos espera, se bem que, como é óbvio, o Z é apenas a minha  tentação de estimular a vossa imaginação.

Mas se é para dar aso à imaginação é preferível procurar um hieróglifo que melhor traduza aquilo que nos espera. Como realmente não sabemos o que se vai passar, qualquer rabisco, qualquer corpo de animal, qualquer par de asas,  pode-nos dar essa visão, na medida em que, temos de ser conscientes que ainda é cedo para se achar que podemos traçar um caminho inequívoco. A questão não se prende propriamente por não sabermos onde queremos chegar, mas sim  em identificar qual o ponto de onde partimos, uma vez que no curto prazo ainda estamos assolados por muitas incertezas. E acreditem, saber o ponto de partida vai fazer toda a diferença…

Mas se tivéssemos de escolher um qualquer caractere para ilustrarmos o que estamos a passar, sem dúvida que escolheríamos um hieróglifo egípcio, o olho de Hórus,olho, que significa a clarividência, proporcionalidade e a prosperidade económica.

A partir do momento em que soubermos avaliar qual vai ser a dimensão real dos estragos provocados por esta pandemia, dificilmente se vai poder ignorar que com tanta liquidez e com tanta capacidade de regeneração, vamos seguramente ter um Boom económico onde podem não caber todas as letras do alfabeto romano. Mas para este Boom ocorrer precisamos de primeiro perceber qual vai ser o impacto de tudo isto.

Em primeiro lugar, temos que entender qual a dimensão do colapso económico e  as suas implicações dado o elevado nível de alavancagem financeira. Infelizmente é muito cedo para se conseguir avaliar o círculo vicioso de moratórias, falências e desemprego. Não é pelo facto de conseguirmos adiar o pagamento das nossas dívidas que os encargos desaparecem, nem tão pouco temos garantias que a procura vai estar ao virar da esquina com o mesmo vigor de outrora.

Isto leva-nos ao segundo ponto, a dimensão da quebra da atividade económica onde no mês de abril parece ser bem mais pronunciada, como atesta a queda de mais de 17% das vendas a retalho (excluindo autos) no mês de abril nos EUA, sendo que esta queda de vendas foi transversal a todos os segmentos. Mas já que estamos a discutir os dados americanos, recordar que nesta semana vamos constatar que desde o início do confinamento mais de 40 milhões trabalhadores pediram subsídio de desemprego…

Certamente que ninguém está à espera que por um passo de magia, a economia americana num espaço de meses vai ter capacidade para absorver toda esta mão de obra. Isto leva-nos ao terceiro ponto, no fundo quanto mais tempo esta situação epidemiológica demorar, mais profunda e complexa vai ser a situação económico-social. Independentemente da situação ter melhorado, ninguém nos consegue ainda esclarecer com o mínimo de credibilidade, durante quanto tempo a atividade económica vai continuar condicionada pelo distanciamento social, máscaras, restrições de convivência de grupos, aberturas de fronteiras, etc… Quanto mais as medidas de distanciamento social demorarem a ser removidas, mais renitentes as empresas vão estar em contratar. Simultaneamente,  não podemos ignorar que muitos negócios vão aproveitar este salto tecnológico digital forçado pela pandemia, para redimensionar e readaptar as suas necessidades do fator trabalho. O choque cultural e estrutural que pode ocorrer no mercado de trabalho pode vir a ser bem mais profundo.

Chegamos assim ao quarto ponto, onde a consequência mais evidente desta pandemia é que ela expôs a cru a precariedade do emprego e a desigualdade. Sabemos que os Bancos Centrais vão continuar a suportar financeiramente a economia e a devolver a capacidade aos Estados para contraírem mais dívida e enveredarem por mais estímulos fiscais. Mas isto não resolve toda a situação criada, apenas atenua a dimensão do problema financeiro e sócio-económico. E daqui a uns tempos vamos ter a ressaca da fartura fiscal, ou seja, os Estados vão começar a pensar como vão reduzir os seus  défices e as suas dívidas, porque simplesmente estas duas variáveis não se evaporam com o virtuoso crescimento económico.

Por fim, chegámos ao ponto que faz a quadratura do círculo, ou seja, quem gera cashflow para alimentar grande parte da dívida existente é o consumo privado que representa mais de dois terços do PIB no ocidente, e por conseguinte a redução da desigualdade é  a solução imediata que os governos têm de gerar crescimento e pôr mais gente a consumir. Acresce o facto que com esta crise os governos ganharam estatuto e poder, a partir do momento que resgataram o setor privado e isso vai ter certamente um pedido de reembolso. Como vai ser preciso financiar o déficit, o mecanismo mais célere para resolver este assunto é a introdução de maiores impostos às empresas e ao património e esta vai ser a bitola que vai ser provavelmente seguida por muitos países.

Por tudo isto e pela falta de visibilidade no curto prazo, o que faz sentido é manter o olho de Hórus bem aberto e humildemente continuar a tentar processar a maior multiplicidade de informação possível. O objetivo é tomar decisões com a clarividência necessária, proporcionais ao risco do atual contexto económico e que assegurem devidamente no médio prazo, a prosperidade económica que julgamos que no final todos vamos acabar por desfrutar!