O aftermath das eleições norte americanas – análise e perspectivas do dia em que todos estávamos errados!

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Vitor Duarte

No rescaldo das eleições norte-americanas, ainda num momento em que não é oficialmente conhecido o novo Presidente dos EUA, o primeiro destaque acaba por ser a constatação evidente de que todos estávamos errados no run-up para estas eleições. Quando me refiro a todos, refiro-me tanto às principais empresas que foram responsáveis pelas sondagens presidenciais, bem como à comunidade de investidores, analistas e estrategistas internacionais (no qual obviamente me incluo), a qual debateu ad infinitum todos os possíveis cenários que poderiam emergir no quadro eleitoral norte-americano e a perspectiva de repercussão no comportamento dos activos financeiros a partir do dia 4 de ovembro.

Em primeiro lugar, as sondagens voltaram a falhar as suas projecções de forma ainda mais estrondosa do que o haviam feito nas eleições de 2016, uma vez que a vantagem estimada para Biden era materialmente superior aquela que Hilary dispunha sobre Trump há quatro anos. Para lá da probabilidade de vitória que era atribuída a Biden entre 85% a 95%, a margem de liderança de Biden sobre Trump nalguns estados decisivos veio a revelar-se totalmente infundada – mérito de Trump ou demérito de Biden? Já o mercado de capitais revelou algum cepticismo nestas sondagens – apesar do duplo sell-off que observámos no mercado de acções e de dívida norte-americana (steepening agressivo da curva de dívida) na semana que antecedeu o acto eleitoral - em torno de uma eventual esmagadora vitória de Biden e da muito proclamada “Onda Azul” que poderia, literalmente, inundar o Congresso, sendo que as sondagens avançadas pela Predictit (as quais reflectiam já o posicionamento/inflows nalguns activos financeiros) indiciavam uma probabilidade de vitória de Biden que não ia além dos 65%.

Do worst case para Goldilocks scenario

Em segundo lugar e obviamente o mais importante e aquele em que irei centrar a minha análise - os diferentes cenários para o que seria o previsível comportamento dos activos financeiros na sequência das presidenciais acabaram por falhar redondamente. Ainda há poucos dias, o consenso de mercado apontava para que o “pior” cenário para o mercado de capitais seria uma eleição “apertada” que tresladasse para acções judiciais de parte a parte e que se materializasse igualmente num Congresso divido – com os Republicanos a manterem o controlo do Senado. Esta situação foi aquela que precisamente se concretizou e observámos um rally significativo das obrigações e das acções (a maior da história no pós E-day), pelo que o “anterior pior cenário possível” rapidamente se transformou numa nova narrativa de Goldilocks para os activos financeiros, uma vez que uma potencial vitória de Biden poderá representar uma liderança menos fracturante numa sociedade excessivamente polarizada e deverá enveredar numa estratégia de contenção pandémica mais credível, não se devendo observar no médio-prazo o tipo de confinamentos draconianos que continuamos a assistir na Europa (a resposta sanitária nos EUA compete aos Governos locais e não Central). Já os riscos de um Congresso dividido traduziram-se rapidamente em benefícios potenciais, sendo que a maioria republicana no Senado inviabilizará o plano de Biden no que respeita a reversão do plano de corte de impostos de Trump, as megacap US techs poderão ser alvo de um escrutínio antitrust seguramente mais brando e o novo pacote de estímulos fiscais – apesar de menor na sua dimensão – deverá continuar a ser uma realidade nos próximos meses. Surpreendidos como o mercado reagiu do worst case para Goldilocks scenario na própria sessão após as eleições norte-americanas? Em 2020 já nada parece surpreender…

À luz da dimensão do suporte fiscal e monetário sem precedentes que tivemos este ano, estarão os investidores já excessivamente complacentes e “viciados” em comprar acções como primeira resposta a qualquer alteração no cenário base? Poderão os activos de risco manter este tipo de outperformance num contexto de agravamento de riscos judiciais no âmbito dos resultados eleitorais? Ou agravamento de riscos pandémicos? Estarão os ganhos dos activos financeiros na sessão de 4 de Novembro relacionados com alguma redução da incerteza que envolvia ou envolverá este acto eleitoral?

Procurando dar resposta a algumas das interrogações suscitadas, não parece haver dúvidas que os massivos estímulos fiscais e monetários que foram implementados em 2020 colocam um limite teórico à dimensão de um drawdown do mercado accionista na trajectória de saída da recessão Covid. Todas as correcções que temos vindo a assistir desde o mínimo de 23 de Março têm oferecido oportunidades de mercado denominadas “Buy the dip” de forma evidente, ainda que a dimensão da performance do mercado de acções e a rotação sectorial que temos vindo a assistir ao longo do ano tenha sido acentuada. A própria sessão subsequente às eleições norte-americanas concretiza esse mesmo paradigma, observando-se uma violenta reversão do trade de rotação de tecnologia para sectores value e small caps que tínhamos vindo a assistir nos últimos 2 meses – os quais obviamente eram os temas mais beneficiados com o cenário de estímulos fiscais mais robustos no pressuposto de uma Onda Azul no Congresso que não se concretizou, ao passo que os headwinds legais que se colocam às tecnológicas perderam fulgor. Por outro lado, o ambiente de risk-on que tivemos ontem coincidiu com a abrupta queda das yields norte-americanas e o aplanamento da curva de dívida, isto para além da compressão significativa dos spreads de crédito corporativos (IG e HY). Curioso ainda notar o rebound assinalável do preço do crude num contexto em que a perspectiva inflacionária claramente retrocedeu, isto para além da manutenção da fragilidade do USD (pese embora a volatilidade) que continua a protagonizar uma correlação directamente inversa com o percurso dos activos de risco. No geral, os volumes na sessão foram relativamente baixos e parecem reflectir um certo posicionamento defensivo dos investidores à entrada destas eleições, uma vez que todos temos a memória fresca relativamente aos acontecimentos de há 4 anos que levaram Trump à Casa Branca.

O play de reflação perdeu assim algum fulgor na ausência de uma maioria democrata no Congresso, mas a rotação sectorial que assistimos poderá continuar a ser uma reacção apenas de curto-prazo, desde que a viabilidade da recuperação cíclica não seja periclitante em 2021 - a qual deverá ser aliás reforçada com a mais que previsível estabilização pandémica (seja pelo anúncio de uma vacina, melhoria de terapêuticas e progressos na imunidade de grupo). A concretizar-se este será um claro risco no upside para a trajectória macro e no sentimento de mercado claramente superior face à dimensão dos estímulos fiscais que vinham sendo incorporados pelo mercado.      

O price-action que referi parece também indiciar que o mercado estava mais focado no que poderia acontecer nas eleições para o Senado do que propriamente no nome do inquilino da Casa Branca. Para fechar o tema do Congresso dividido e uma previsível vitória de Biden, o qual terá como efeitos imediatos a não reversão do plano de corte de impostos de Trump e um plano de estímulos fiscais não só mais modesto no montante como também a jusante, isto é, previsivelmente menos expansionista no que respeita o mix da sua composição face aos pressupostos de multiplicadores económicos da despesa – os republicanos deverão favorecer um plano de estímulos assente em contribuições para PPP´s em detrimento dos democratas que prefeririam transferências directas para Governos locais (o efeito do multiplicador da despesa poderia ser o dobro em relação ao primeiro). A eventual agenda presidencial de Biden poderia prosseguir sem o apoio do Congresso por via de decretos presidenciais, seja no que respeita a transição energética e/ou o aumento do escrutínio/regulação sobre tecnologia, mas os seus efeitos revelam-se previsivelmente limitados. Enfim, nos últimos 14 anos o Congresso tem estado permanentemente divido e apenas durante 4 desses 14 anos (nos primeiros 2 anos do mandato de Obama e de Trump tivemos um Onda Azul e Vermelha no Congresso respectivamente). Um Congresso dividido é a norma recente e o mercado tende a apreciar a previsibilidade que decorre do status quo.

Uma ressalva importante de fazer é que a eleição para uma maioria republicana no Senado ainda não está confirmada (não obstante muito provável). A contagem actual dos Senadores mantém-se num empate 47-47, sendo que os Democratas continuam a precisar de recuperar um mínimo de 3 Senadores e deverão conseguir 1 no Arizona (antigo astronauta Mark Kelly), sendo que na Georgia poderá haver uma nova disputa por 2 lugares no Senado – o que se materializará num duplo run-off a 5 de Janeiro (uma vez que este Estado requer que a nomeação Senatorial ascenda a 50% dos votos representativos – algo que poderá não ser conclusivo até ao final desta semana). A confirmar-se este cenário de maior incerteza a pairar sobre o Senado, o controlo do Senado poderá ficar apenas decidido no início de Janeiro – independentemente de quem seja o novo Chief Commander in Office – e refém de novo acto eleitoral na Georgia, o que convenhamos é um “terreno” tradicionalmente desconfortável para os democratas, não obstante o alargamento do eleitorado urbano e suburbano em torno de Atlanta, Augusta, Columbus ou Savannah. Na hora a que escrevo (16H de 5/Nov.), a tendência é claramente a vitória de Biden (com Congresso dividido, ainda que não seja de excluir uma remota probabilidade de um cenário distinto na Casa Branca e no Congresso. Quem sabe? Afinal estamos em 2020!   

O meu “live feed” com a CNN das últimas 30 horas ainda não consegue determinar com certeza o nome do futuro presidente dos EUA, mas o “caminho” de Joe Biden afigura-se claramente mais fácil. Bastará arrecadar os votos para os Grandes Eleitores no Arizona (11) e Nevada (6) onde tem em ambos os casos vantagem para chegar aos 270 votos necessários para a vitória no Colégio Eleitoral. A própria Pennsylvania (20) tem visto Biden a encurtar distâncias face a Trump (diferença de 130 mil votos com 90% dos votos contados) e poderá ainda virar democrata (20 Grandes Eleitores) e a mesma tendência se tem observado na Georgia (~20 mil votos de diferença com 95% dos votos contados). Quando ler este artigo de opinião, já grande parte desta incerteza terá sido dissipada, uma vez que os números finais do Arizona, Nevada e Georgia deverão ser conhecidos ainda na quinta-feira, ao contrário da Pennsylvania cuja contagem deverá prolongar-se até sexta-feira. É assim muito provável que entre o momento de escrita deste artigo e a leitura da sua parte já seja conhecido o nome do novo presidente dos EUA.

Muito ruído nas próximas semanas

De forma não surpreendente, o quadro de incerteza legal deverá persistir nos próximos dias/semanas – aliás na última hora vejo-me inundado de tweets da campanha de Trump a ordenar a paragem imediata da contagem dos votos, o que aliás não deixa de ser um pouco irónico se pensarmos nos EUA (tal como UK) como o berço da liberdade e das democracias modernas. Esta situação de instabilidade já vinha sendo gradualmente incorporada pelo mercado, pelo que o impacto no mercado deverá ser bastante mais limitado do que o inicialmente previsto ou mesmo face à instabilidade que vigorou por exemplo nas eleições de 2000 e na recontagem dos votos da Flórida na eleição entre Gore e Bush. O factor crítico que devemos prestar atenção para evitar uma crise constitucional passa precisamente pela retórica da contestação que será adoptada por outras referências do Partido Republicano – Senadores como Mitch McConnell e Marco Rubio já se demarcaram das acusações de irregularidade feitas por Trump - a qual dependerá essencialmente da margem de diferença dos resultados finais entre Biden e Trump nos Estados decisivos. Repare-se que o próprio Vice-Presidente Mike Pence foi bastante mais comedido aquando um despropositado discurso de eventual vitória de Trump ainda na madrugada do acto eleitoral. Trump pretende que se pare a contagem nos votos em que ainda mantém a liderança (Pennsylvania e Georgia) e que se recomece a contagem dos votos em que foi derrotado (Wisconsin, Michigan e previsivelmente Nevada) sem se perceber muito bem a lógica dos seus fundamentos iniciais. A margem de diferença de votos entre Biden e Trump nos Estados com a contagem fechada ou prestes a fechar é de 20k no Wisconsin, 150k no Michigan, 90k no Nevada e 70k no Arizona. Basta pensar que tradicionalmente as recontagens de votos que foram feitas no passado não levaram a alterações significativas do sentido de voto – por norma a recontagem altera em poucas centenas de votos face ao resultado anterior. Neste momento, a vantagem de Biden está confortavelmente acima dessa referência, pelo que tanto a base legal de eventuais irregularidades citada por Trump é altamente questionável (tanto nos Tribunais inferiores como mesmo no Supremo com maioria Republicana), como a perspectiva de recontagem de votos pouco deverá fazer para alterar a dinâmica dos votos no Colégio Eleitoral. Podemos observar muito ruído nos próximos dias e/ou semanas, mas o mercado deverá ter capacidade para interpretar os diferentes cenários e afastar os riscos mais extremados.

Voltando ao cenário base de uma eventual vitória de Biden com Congresso dividido e que levaria à impossibilidade de um plano de estímulo fiscal mais agressivo, o holofote recentrar-se-ia naquilo que o FED ainda poderia fazer para lidar com os riscos/vigor da recuperação cíclica. Talvez algum fine-tune das suas políticas de QE, eventuais medidas de controlo da curva e outros ajustes em programas de emergência de liquidez como o Main Street Lending Programme.  No entanto, o efeito global das suas políticas parece-nos algo limitado face às taxas de juro actuais e terá também uma pressão diferente face ao menor nível de aumento do endividamento numa lógica de Congresso dividido.

Não obstante os desafios que o futuro presidente norte-americano terá pela frente no quadro de um Congresso dividido independente do nome de quem ocupará a Casa Branca, o país continuará a beneficiar de vantagens intrínsecas da sua economia que a elevam face às demais (grau de flexibilidade, desregulação, código fiscal, sistema judicial, facilidade de fazer negócio e acesso a capital, cultura pró-risco, poder científico e tecnológico, demografia e tecido económico, USD como moeda de reserva mundial, poder estratégico-militar e outros tantos só para nomear alguns!). A figura do novo presidente, a concretizar-se o nome de Biden (claramente um hábil negociador de perfil absolutamente centrista), poderá ser importante para tentar mitigar o nível de polarização crescente da sociedade norte-americana e construir algumas pontes entre as alas menos radicais dos partidos Democrata e Republicano, procurando fortalecer o compromisso bipartidário nalguns temas chave. O tom do discurso será previsivelmente bastante diferente e isso também poderá fazer alguma diferença, seja no quadro interno como na vertente da política externa. Em relação ao ciclo da recuperação económica nos EUA, urge controlar melhor a pandemia (o que poderá ser até mais importante do que um agressivo plano de estímulos fiscal) o que teria reflexos positivos na dinâmica do mercado de capitais – bastaria os EUA serem como intrinsecamente são para o estágio da situação evoluir naturalmente para melhor – veja-se a notável recuperação da economia americana desde o período das trevas (Março/Abril) face à evolução anémica e absolutamente subsidiada que se regista no Velho Continente. Afinal e metamorfoseando um típico slogan que tem sido utilizado pela campanha de Trump - “America has always been great”!

(Este artigo de opinião foi escrito ao abrigo do anterior acordo ortográfico)