Nem me digas mais nada...

Jorge_Silveira_Botelho
Vito Duarte

A Dona Emília estava desolada, tinha feito uma aplicação há um ano atrás nuns bilhetes do tesouro e detinha menos dinheiro do que aquele que aplicou. Foi de imediato ao banco “refilar”, convencida que mais uma vez lhe tinham cobrado indevidamente comissões. O Caixa já habituado a ser tratado como a “caixa de pandora do universo”, calmamente explicou que ela tinha emprestado dinheiro ao Estado a uma taxa de juro negativa, ou seja, não estava a receber juros, mas sim a pagá-los. Em face daquilo que o Caixa lhe acabara de contar, a sua primeira reação foi deduzir, que se a culpa não é dos bancos é obviamente do Fisco. Este anda sempre cheio de falinhas mansas, mas sempre que pode aproveita-se para cobrar tudo e mais alguma coisa. No entanto, o Caixa esclareceu que o responsável deste incómodo das taxas de juro negativas era o Banco Central Europeu.

Dona Emília ficou sem perceber nada e desabafou com o jovem Caixa:

- Nem me digas mais nada! E voltou para casa preocupada.

Tinha-se reformado há pouco tempo com uma reforma baixa e o dinheiro que tinha poupado era supostamente um complemento da mesma, para fazer face ao aumento da esperança média de vida. Fisicamente sentia-se tão bem que se imaginava facilmente viver pelo menos um século. Mas o que supostamente era razão para regozijo, provocava-lhe agora mais angústia.

- O que é que faço? Dizia ela sozinha quando se passeava dentro de casa.

- Nem me digam mais nada! Algo tem de mudar, tenho de pôr o dinheiro a render pelo menos a zero e reduzir os meus encargos mensais.

Entretanto ligou-lhe o seu marido Joaquim que possuía um pequeno negócio de eletrodomésticos:

- Oh Emília, estou farto disto, há dez anos que só vejo os preços a cair e as margens a desaparecer, agora até vender a prestações é um suplício. Acho que já não tenho outra alternativa senão fechar o negócio...

- Oh Joaquim, nem me digas mais nada, vem mas é para casa!

Enquanto pensava naquilo que tinha de cortar para poupar, ligou-lhe o seu querido filho Adalberto:

-Olá mãezinha, era para lhe dizer que vai ter mais um neto, só à minha conta já são quatro. Eu e a Tina só temos um problema, precisamos de comprar um carro de 7 lugares...

-Oh filho, nem me digas mais nada! Claro que fico muito feliz por vocês, mas quero que saibas que já não te posso ajudar da mesma forma que antes.

- Ok, mãezinha, eu cá me arranjo. Em princípio posso comprá-lo a prestações. Sabe que com esta história dos juros negativos torna tudo mais barato. Mensalmente pago o capital menos uma parcela de juros, o que na prática funciona como um desconto, que neste caso não é de pronto pagamento é de lento pagamento ou qualquer coisa assim. Não é uma maravilha? Agora tenho de desligar, mas depois falamos.

Dona Emília pôs-se a refletir no que o filho lhe tinha acabado de lhe contar e começou a pensar que o segredo estava em gastar o menos possível, pois essa era a única forma de conseguir garantir poder de compra no futuro, uma vez que, tendencialmente os preços iam ser sempre mais baixos.

De repente toca o telefone, era a sua filha Rosa que é enfermeira na Alemanha.

- Olá Rosinha estás bem querida, tenho tantas saudades! Só tu para me dares boas notícias.

- Olá mãe, bem gostava, mas infelizmente não tenho nada de bom para lhe contar. A fábrica onde o Fritz trabalha em Frankfurt está em dificuldades e estão a propor um corte de 30% de salários ou então vão ter de fechar. Os preços das peças que produzem não param de cair e a procura é praticamente inexistente, dizem que as pessoas agora só poupam, mas também não percebo porquê. Então com a quantidade de taxas de juro negativas que andam por aqui, isto não devia ser bom para todos?

- Oh Rosinha, nem me digas mais nada, vamos é já desligar o telefone para começar a poupar por algum lado. Esta história das taxas de juro negativas, só me traz aflição!

Ao fim do dia o Sr. Joaquim chega a casa e pergunta à sua mulher Emília:

- Então o que vamos fazer?

E a Dona Emília respondeu:

- Nem me digas mais nada! Tens de fechar a empresa, vamos cortar em 30% os nossos gastos e vamos aproveitar para vender já a casa e alugar uma mais pequena. Se isto se mantém assim durante mais tempo e com tanta gente com casa própria, os preços vão acabar por cair e as rendas também, mas ao menos estas estão indexadas à inflação, ou melhor, à deflação...

E compassivamente o Joaquim murmurou:

- Nem me digas mais nada...

Ficha técnica:

O último leilão a 11 meses em Portugal obteve uma taxa de -0,395%( fonte: IGCP 19/06/19), as taxas de juro a 5 anos estão negativas em 0,127% (fonte: Bloomberg 20/06/19), a taxa de poupança das famílias é a mais baixa de sempre (4,6% em 2018, fonte: INE), quase um terço dos pensionistas (32%) nos últimos três meses ajudou um familiar (fonte: sondagem 2019 do Instituto BBVA de Pensões).

Em Portugal a esperança média de vida aos 65 anos ascende a 19,45 anos, com 21,5% da população total com mais de 65 anos (fonte: INE) e o país está em quinto lugar do ranking mundial dos países com a população mais envelhecida, (fonte: Euromonitor International).

Por seu turno, 75% da população portuguesa detém casa própria (fonte: Eurostat) e 80% dos pensionistas detém também habitação própria (fonte: sondagem 2019 Instituto BBVA de Pensões). Acresce o facto de que 34% dos reformados, admite vender a casa própria, caso necessite de liquidez extra durante a reforma (fonte: sondagem 2019 Instituto BBVA de Pensões). Por fim, segundo o INE, os preços das casas no país subiram em média cerca de 30% nos últimos 3 anos e mais de 50% em Lisboa e no Porto.

É caso para dizer:

- Nem me digas mais nada!