MiFID II em Portugal – Será este o fim do level playing field? (Parte I)

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Nos termos das regras aplicáveis às fontes de Direito Europeu estabelecidas no Tratado de Lisboa, as Diretivas da União Europeia (UE) carecem de transposição para as ordens jurídicas dos Estados-Membros. No entanto, nem sempre estas transposições são terminadas em tempo.

A transposição da Markets in Financial Instruments Directive, ou MiFID II, é um desses casos, visto que deveria ter sido efetivamente transposta em 2017 e entrado em vigor até ao dia 3 de janeiro de 2018, mas apenas no passado dia 25 de janeiro foi aprovada em Conselho de Ministros a proposta de Lei que a transpõe (Proposta de Lei n.º 109/XIII/3.ª).

Tendo em conta que o debate na generalidade foi efetuado em reunião Plenária da Assembleia da República, no passado dia 22 de fevereiro, para que processo de transposição fique completo, seguir-se-á ainda o debate e votação na especialidade, a votação final em Plenário, a promulgação do Presidente da República e, finalmente, a publicação da norma de transposição em Diário da República. Espera-se, assim, que este processo esteja completo algures entre o final de março e o início de maio.

Para além da proposta de transposição, serão ainda discutidas 10 iniciativas legislativas do Grupo Parlamentar do Partido Socialista (GPPS), que, quando foram apresentadas, tinham como objetivo alterar as normas que iriam ser estabelecidas pela Lei de transposição da MiFID II.

De facto, não faria qualquer sentido discutir as normas de transposição na especialidade, ver essas normas entrar em vigor e, posteriormente, alterar essas normas. Não faria também qualquer sentido discutir propostas de alteração a artigos que ainda não estão definidos por não terem sido votados na especialidade. Assim, imperou o bom senso, visto que as discussões na especialidade da proposta de transposição da MiFID II e das 10 iniciativas legislativas serão feitas em conjunto.

Será essencial, na nossa opinião, mitigar os riscos de ir, no âmbito da transposição da MiFID II, além do previsto na mesma, pelo que será necessário discutir com especial cuidado todos os temas que vão para além da ratio legis da MiFID II.

Talvez por isso, no seu discurso na reunião plenária da Assembleia da República para discussão na generalidade da proposta de Lei de transposição da MiFID II, a Dra. Gabriela Figueiredo Dias, Presidente do Conselho de Administração da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), tenha referido o seguinte: “Compreendendo as preocupações subjacentes às propostas dos diversos Grupos Parlamentares, devo alertar para os riscos inerentes a medidas que vão além da legislação europeia, designadamente de perda de competitividade, de arbitragem regulatória e até riscos legais nos casos em que contrariem os limites impostos pelo enquadramento europeu.”.

Não obstante, nem só das iniciativas legislativas do GPPS resultam normas para além do escopo previsto na MiFID II, visto que a proposta de Lei que transpõe a MiFID II inclui também normas de execução do Regulamento PRIIPs, normas aplicáveis à governação de produtos bancários de retalho (depósitos simples e produtos de crédito), entre outras.

Em face do exposto, consideramos importante perceber quais são as propostas previstas nas iniciativas legislativas do GPPS e como é que as mesmas diferem da proposta de Lei de transposição da MiFID II. Dessa forma, destacamos as propostas que consideramos mais relevantes, com impacto no Código dos Valores Mobiliários (CVM) e no Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras (RGICSF), indicando as mesmas por temas:

Governo interno

  • O projeto de Lei n.º 632/XIII/3.ª prevê que o intermediário financeiro não poderá conceder crédito aos seus colaboradores para a realização de operações sobre instrumentos financeiros (i) emitidos pelo próprio intermediário financeiro; (ii) emitidos por entidades em relação de domínio ou grupo com o intermediário financeiro; (iii) emitidos por entidades com participação qualificada no intermediário financeiro; (iv) emitidos por entidades em relação de domínio ou grupo com as entidades referidas na alínea anterior ou (v) geridos por sociedades gestoras de organismos de investimento coletivo que tenham com o intermediário financeiro uma das relações referidas nas alíneas anteriores (aditamento do n.º 4 do artigo 305.º do CVM), o que é uma novidade face à proposta de Lei que transpõe a MiFID II;
  • Neste seguimento, enquanto a proposta de Lei que transpõe a MiFID II estabelece que o montante dos créditos concedidos, sob qualquer forma ou modalidade, incluindo a prestação de garantias, a pessoa que direta ou indiretamente detenha participação qualificada numa instituição de crédito e a sociedade que essa pessoa direta ou indiretamente domine, ou que com ela estejam numa relação de grupo, não poderá exceder, em cada momento e no seu conjunto, 10 % dos fundos próprios da instituição, o projeto de Lei n.º 628/XIII/3.ª reduz este valor para 2%, definindo também um período transitório de 12 meses para os créditos existentes à data de entrada em vigor do diploma (alteração do n.º 1 do artigo 109.º do RGICSF).

Governação de produtos

  • Os projetos de Lei n.º 634/XIII/3.ª e n.º 630/XIII/3.ª impõem, para além do disposto na proposta de Lei de transposição da MiFID II, que os operadores de mercado assegurem que as políticas e procedimentos de governação e monitorização de produtos nomeadamente, instrumentos financeiros, depósitos simples e produtos de crédito, prevejam:
    • Que a concessão de crédito, incluindo para a realização de operações sobre produtos, a pessoas com as quais um colaborador tenha uma relação familiar ou estreita seja objeto de aprovação sem a intervenção do colaborador em causa (aditamento da alínea a) do n.º 5 do artigo 309.º-M do CVM e alteração do n.º 3 do artigo 90.º-B do RGICSF);
    • Que o órgão de administração aprova a distribuição de instrumentos financeiros (i) emitidos pelo próprio intermediário financeiro; (ii) emitidos por entidades em relação de domínio ou grupo com o intermediário financeiro; (iii) emitidos por entidades com participação qualificada no intermediário financeiro, calculada nos termos do RGICSF; (iv) emitidos por entidades em relação de domínio ou grupo com as entidades referidas na alínea anterior ou (v) geridos por sociedades gestoras de organismos de investimento coletivo que tenham com o intermediário financeiro uma das relações referidas acima (aditamento alínea b) do n.º 5 do artigo 309.º-M do CVM).
  • Apesar da MiFID II não prever qualquer regra nesse sentido, a proposta de Lei que transpõe a MiFID II determina que as instituições de crédito devem estabelecer e aplicar procedimentos específicos para a governação e monitorização de depósitos simples e produtos de crédito, aplicáveis à comercialização desses produtos, independentemente de terem sido concebidos por si ou por outra instituição de crédito, de modo a garantir que os interesses, objetivos e caraterísticas dos consumidores dos mesmos são tidos em conta, a prevenir situações potencialmente prejudiciais para os consumidores e a minimizar o risco de conflitos de interesses (alteração do artigo 90.º-C do RGICSF). O projeto de Lei n.º 630/XIII/3.ª prevê uma norma semelhante, contudo, com recurso a uma terminologia distinta, designadamente “criados e desenvolvidos” ao invés de “concebidos” e “clientes destinatários” ao invés de “consumidores”. Assim, quer a terminologia utilizada no projeto de Lei n.º 630/XIII/3.ª, quer a utilizada pela proposta de Lei que transpõe a MiFID II, não encontram paralelo na terminologia e nas normas adotadas pelo legislador europeu.

Política de remuneração

  • O projeto de Lei n.º 634/XIII/3.ª pretende reforçar as práticas e políticas remuneratórias estabelecidas na proposta de Lei que transpõe a MiFID II, impondo, adicionalmente, que os operadores de mercado assegurem que a política de remuneração dos seus colaboradores (aditamento do n.º 3 e n.º 4 do artigo 309.º-H do CVM e alteração do n.º 3 do artigo 89.º-A do RGICSF):
    • Estabeleça que a componente variável da remuneração não pode exceder a componente fixa da remuneração;
    • Não assente em produtos e serviços bancários específicos;
    • Não assente em operações de compra, subscrição ou prestação de serviços sobre instrumentos financeiros (i) emitidos pelo próprio intermediário financeiro; (ii) emitidos por entidades em relação de domínio ou grupo com o intermediário financeiro; (iii) emitidos por entidades com participação qualificada no intermediário financeiro; (iv) emitidos por entidades em relação de domínio ou grupo com as entidades referidas na alínea anterior ou (v) geridos por sociedades gestoras de organismos de investimento coletivo que tenham com o intermediário financeiro uma das relações referidas nas alíneas anteriores;
    • Não estipule que seja alcançado um nível mínimo (i) de produtos e serviços bancários ou (ii) de operações de compra, subscrição ou prestação de serviços sobre instrumentos financeiros, para efeitos de atribuição de remuneração variável ou de incentivos aos colaboradores da instituição.

Suitability / Appropriateness

  • Enquanto a proposta de Lei que transpõe a MiFID II prevê que, caso o serviço ou o instrumento financeiro seja avaliado pelo intermediário financeiro como potencialmente não apropriado a determinado cliente, o intermediário financeiro advirta o cliente, por escrito, desse facto, o projeto de Lei n.º 625/XIII/3.ª introduz a obrigação adicional do cliente confirmar por escrito que recebeu essa advertência (alteração n.º 2 do artigo 314.º do CVM);
  • A proposta de Lei que transpõe a MiFID II estabelece que os intermediários financeiros (i) podem basear-se na informação sobre o cliente ou nas recomendações comunicadas ao cliente, transmitidas por outro intermediário financeiro e que (ii) devem assegurar a suficiência e a veracidade da informação do cliente e a adequação das recomendações prestadas ao cliente, por si transmitidas a outros intermediários financeiros (n.º 6 e n.º 7 do artigo 314.º do CVM). Todavia, o projeto de Lei n.º 625/XIII/3.ª não faz qualquer menção sobre esta matéria, não referindo sequer se os números do artigo em questão são ou não revogados, pelo que será necessário resolver essa questão nas discussões na especialidade, de forma a não criar insegurança jurídica para os intermediários financeiros;
  • Na prestação dos serviços de gestão de carteiras e de consultoria para investimento, o projeto de Lei n.º 625/XIII/3ª impõe, aquando da avaliação do carácter adequado do serviço ou do instrumento financeiro para o qual se encontre estabelecido um montante mínimo de investimento, que os intermediários financeiros não possam propor a captação de fundos junto de pessoas com as quais o investidor tenha uma relação familiar ou estreita. Com efeito, trata-se de uma alteração do atual n.º 2 do artigo 314.º-A do CVM, que é revogado pela a proposta de Lei de transposição da MiFID II, pelo que este tema terá, certamente, de ser debatido exaustivamente na especialidade de forma a não criar insegurança jurídica para os intermediários financeiros;
  • Finalmente, não obstante a proposta de Lei que transpõe a MiFID II apenas exigir, na prestação do serviço de gestão de carteiras ou de outros serviços a investidores não profissionais, se tal for acordado com o cliente, (i) a realização da avaliação periódica do carácter adequado da operação ou serviço e (ii) a entrega do relatório sobre o modo como a operação ou o serviço corresponde às preferências, objetivos e outras características do cliente (n.º 3 do artigo 323.º do CVM), o projeto de Lei n.º 629/XIII/3ª estende também essa obrigação a investidores profissionais.

No nosso próximo artigo continuaremos (i) a destacar as propostas que consideramos mais relevantes, com impacto no CVM e no RGICSF e (ii) a especificar como é que as mesmas diferem da proposta de Lei de transposição da MiFID II e, por último, apresentaremos as nossas conclusões quanto às iniciativas legislativas apresentadas.

Nesse artigo, serão abordados os temas (i) consultoria para investimento; (ii) receção e transmissão ou execução de ordens; (iii) publicidade e informação ao cliente; (iv) contraordenações e (v) poderes da autoridade de supervisão.

Agradecemos toda a atenção que dispensaram à primeira parte do nosso artigo e esperamos que tenham a possibilidade de ler o próximo.

(O presente artigo é assinado por Roberto Bilro Mendes e Jacqueline Fernandes Pereira, respetivamente Manager e Senior Consultant do Departamento de Financial Services Risk & Regulation da PwC. Os autores contam com extensa experiência em projetos de implementação dos requisitos decorrentes dos pacotes legislativos MiFID II/MiFIR, PRIIPs e IDD, em várias instituições de crédito nacionais e internacionais. Partindo dessa experiência, apresentam no presente artigo uma análise exaustiva dos temas mais importantes que se encontram a ser discutidos na especialidade no Parlamento no âmbito da transposição da MiFID II, tendo como principal objetivo indicar e explicar as diferenças entre a Proposta de Lei de transposição da MiFID II e as propostas legislativas apresentadas pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista,  especificamente quanto aos temas de governo interno, de governação de produtos, da política de remuneração, do suitability/appropriateness, da consultoria para investimento, da receção e transmissão ou execução de ordens, da publicidade e informação ao cliente, das contraordenações e dos poderes das autoridades de supervisão. São ainda especificados, sempre que necessário, os casos em que essas propostas vão para além do escopo e do espírito da MiFID II. O presente artigo é dividido em duas partes, devido às suas dimensões)