“Estamos a assistir, como nunca nas últimas décadas, a um cenário de imprevisibilidade total”

Em entrevista à Funds People Portugal, o presidente da APAF – Associação Portuguesa dos Analistas Financeiros, Raul Marques, destaca as lições, os efeitos positivos desta nova realidade, e reforça a importância da aposta na literacia financeira e nos hábitos de poupança dos portugueses.
 
 
Nos últimos anos, com as crises sucessivas que fomos tendo, que desafios se têm colocado à actividade?
Num contexto mais difícil o grau de exigência que é colocado é superior. Penso que, neste cinco anos que levamos desde que esta crise começou, sob diversas facetas, acima de tudo há mais imprevisibilidade e a dificuldade de fazer análises financeiras é maior. Também acho que ficámos todos mais cientes da responsabilidade que temos como analistas, como investidores, como emitentes. Hoje em dia o contexto macroeconómico muda permanentemente,  a arquitectura institucional, os temas, crises, a bolsa... há coisas que hoje estamos a discutir que há dois anos eram difíceis de prever. Estamos a assistir de facto, como nunca nas últimas décadas, a um cenário de imprevisibilidade total  e, nesse contexto, os analistas financeiros têm uma dificuldade muito maior de fazer as suas análises. Depois, o contexto mais internacional, em que os emitentes desenvolvem cada vez mais a sua actividade, também não facilita. Mas penso que, acima de tudo, é de uma dificuldade extraordinária nós hoje em dia, qualquer analista, qualquer pessoa envolvida no mercado de capitais, fazer previsões, seja sobre o que for.
 
Os analistas tornaram-se mais prudentes?
Seguramente que sim. Os anos 90 foram anos com crises muito sérias, depois houve o boom da Internet, onde o caminho das acções era quase só para cima. Nos últimos 10 anos aprendemos muitíssimo. Penso que hoje estamos todos mais prudentes. Como já passamos várias crises, fases de grande ‘boom’ depois fases muito ‘bear’, acho que devemos, na medida do possível, olhar para tudo isto, tendo a noção que às vezes, para lá do caminho que conseguimos ver, pode haver um futuro que não seja exactamente como o vemos hoje, seja mais ou menos positivo. 
 
Pensa que esta actividade, como outras, terá perdido um pouco do capital de confiança dos investidores, como aconteceu com as agências de ‘rating’, por exemplo?
Todos os que actuamos no sistema financeiro, nos mercados de capitais em particular, o ‘rating’ que nos é dado em termos de credibilidade por parte dos investidores, acho que claramente baixou. Espero que os analistas financeiros, os emitentes, os investidores, todos tenhamos tirado e continuemos a tirar ilações de tudo o que tem vindo a acontecer, porque de facto havia alguns excessos. Acima de tudo tem que se manter o foco no longo prazo, embora hoje em dia isso seja muito difícil, e ser mais prudente. Tudo isto nos exigiu um maior grau de rigor.
 
De sociedade de consumo e crédito a uma sociedade de poupança

Na sequência do que tem acontecido nos últimos cinco anos, passou a haver também uma preocupação maior com a literacia financeira?
Claro que sim. E é uma questão mais vasta, que se prende não só com os mercados de capitais como com tudo aquilo que nos rodeia. Se virmos o que aconteceu, não só em Portugal, em termos de endividamento, obviamente que constatamos que o grau de literacia financeira das pessoas em geral tem de ser melhorado. E isso reflecte-se em iniciativas que são de louvar como o Plano Nacional de Formação Financeira,  em que a APAF também está envolvida. Se há algo que considero decisivo em tudo isto é aumentar as qualificações profissionais dos analistas financeiros, o nível de qualificação de todos aqueles que estão nas redes de distribuição de produtos financeiros. Há uma mudança estrutural, que é passar, pondo a questão de forma simplista, de uma sociedade do consumo e do crédito, para uma sociedade da poupança. Poupar é importante, aplicar e investir bem as poupanças é decisivo, e isto é válido para todos os agentes financeiros – para os particulares seguramente – e nesse contexto a literacia financeira de todos é muito importante. Muitos investidores em fase de ‘bull market,’ desconectam-se da realidade, acreditam em coisas que não são exequíveis.
 
E considera que nos últimos anos têm havido incentivos efectivos à poupança ou que, nomeadamente, alterações a nível fiscal, têm de alguma forma ‘travado’ esse caminho?
Penso que actualmente existe em Portugal, e não só, uma consciência muito grande que é preciso incentivar a poupança ‘versus’ o consumo. Mas também percebemos que as decisões no curtíssimo prazo quando os decisores estão a enfrentar questões difíceis e têm de ter resultados no curtíssimo prazo, nomeadamente na cobrança de impostos, nem sempre são conceitos que fazem sentido no médio prazo. Se há coisa que faz sentido, em primeiro lugar, é incentivar a poupança face ao consumo, sempre, mas nomeadamente nesta fase ainda mais; em segundo, ter ao nível da tributação da poupança um quadro relativamente estável. Houve alterações que não foram as mais adequadas ao nível de alguns produtos que nos últimos anos perderam alguma capacidade de atracção, como os certificados de aforro, alguns fundos de investimento... E a questão que hoje se discute do arrendamento, com a alteração da legislação do arrendamento urbano, também tem de ser devidamente incentivada de ambos os lados.
 
Quando olha para o futuro, em Portugal, o que é que vê?
A título pessoal o que vejo é que existem dois lados, um pouco como o copo meio cheio e meio vazio. O copo meio vazio obviamente que é aquilo que no curto prazo está a acontecer, com efeitos muito nocivos em termos de taxa de desemprego, de dificuldades que muitos particulares, muitas empresas enfrentam. Vendo do lado do copo meio cheio há, de facto, um ajuste macroeconómico que em vários aspectos se está a fazer de forma apreciavelmente rápida, o nosso défice face ao exterior está a ser corrigido razoavelmente; quanto ao consumo era inevitável e expectável que se retraísse, não conseguíamos continuar a consumir e endividarmo-nos ao ritmo a que estávamos a fazê-lo; depois também se verificam algumas alterações, no sentido desejável e até com alguma rapidez, por exemplo nos rácios de transformação dos bancos. As reformas estruturais também têm acontecido com alguma rapidez. Penso que em termos macroeconómicos, o caminho que estamos a percorrer é o correcto. Esperemos que sejam ajustamentos de curto prazo que venham a reflectir-se num vigor acrescido no médio e longo prazo da economia portuguesa.