DMIF II: Em vigor mas dúvidas permanecem

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Há já vários anos que a DMIF II está no centro das preocupações dos reguladores e intermediários financeiros, e, meses após a sua entrada em vigor, alguns detalhes muito discutidos continuam a não ser totalmente claros para o mercado. Neste contexto, o Observatório Português de Compliance e Regulatório organizou uma conferência na Sociedade Portuguesa de Geografia onde reuniu profissionais com diferentes perspectivas da regulação. Depois de uma intervenção por parte de Tiago dos Santos Matias, Diretor do Departamento de Supervisão Contínua da CMVM, Paulo Costa Martins, Sócio do Departamento de Bancário e Financeiro da sociedade de advogados Cuatrecasas, moderou um painel com Mário Neves, Diretor de Compliance do Millennium BCP, Joana Frade, Diretora de Compliance do Credit Suisse Portugal e Pedro Ferreira Malaquias, Sócio da Uría Menéndez, onde se esclareceram temas, mas também se levantaram questões.

Depois de umas notas introdutórias por parte de Pedro Ferreira Malaquias, onde este descreveu os diferentes âmbitos de aplicação prática da DMIF II, a Joana Frade coube o papel de detalhar o tema da consultoria de investimento no contexto da regulação. “Com a introdução da categoria de consultoria de investimento independente, o legislador veio acrescer às exigências que caíam sobre a consultoria dita não independente. Veio, então, exigir-se aos intermediários financeiros (IF) que optem pelo exercício desta atividade de forma independente e que ofereçam uma gama diversificada de produtos de mercado, muito além dos produtos comercializados ou emitidos pelo próprio”.

Em Portugal, o legislador permite que o intermediário financeiro exerça simultaneamente os dois tipos de consultoria, muito embora exija que essas atividades sejam levadas a cabo de forma segregada. “O legislador português acrescenta ainda a necessidade de que, previamente a cada operação, o cliente seja advertido e informado da forma de aconselhamento que lhe será prestada. E não basta que essa advertência seja efetuada de forma genérica aquando do estabelecimento da relação comercial.

Já no que se refere às retrocessões e outros benefícios, Joana Frade destaca que “poderemos observar que a indústria se refugiará no conceito que conhece de consultoria não independente, como princípio”. Neste contexto, a diretora de compliance da sucursal nacional do Credit Suisse, lança a questão da divisão de tarefas entre o intermediário financeiro e a entidade terceira (fornecedora dos produtos): “Será a entidade terceira a que tem a responsabilidade de comprovar ao IF que o benefício atribuído resultará num efetivo valor acrescentado para o cliente? Como se dividem as tarefas entre os intervenientes no processo comercial?

Mais além, Joana Frade questiona acerca da definição do montante de um benefício aceitável, nomeadamente considerando os ativos geridos ou o rendimento gerado pela prestação do serviço. “Em teoria, os dois são admissíveis, ou um mix dos dois. Se optar pelo segundo, como posso gerir da melhor forma os conflitos de interesse?”

A diretora de compliance do Credit Suisse refere ainda: O que observo no mercado é que a maioria da indústria optou pela opção de consultoria não independente. É menos exigente em termos regulatórios, mais barata e com a possibilidade de colocação de produtos próprios e recepção de benefícios. Este conjunto de circunstâncias associada à ainda indefinida admissibilidade ou não dos benefícios faz com que não haja um verdadeiro incentivo a que os operadores de mercado adotem a possibilidade de prestação de um serviço independente. Noutra perspectiva, não acredito que haja da parte do mercado a percepção da mais valia que representa um serviço de consultoria independente. O cliente tende a preferir o serviço aparentemente mais barato”.

Mário Neves aborda MiFID de outra forma. “Muito se diz sobre a DMIF II que assegura a transparência e a qualidade de informação, mas, a meu ver, a regulação veio forçar o mercado a focar na prestação de um serviço de verdadeiro valor acrescentado. Mas esse conceito de valor acrescentado é muito difícil de harmonizar e a regulação trouxe consigo a necessidade de um conjunto de investimento significativos”, comenta. Para o profissional do Millennium BCP, as exigências de DMIF II requerem um investimento muito forte na formação de colaboradores e a mudança da abordagem à prestação de serviços através de soluções que são “caras” e “pesadas”. Não é, de todo, líquido que os ganhos sejam imediatos ou certos, e num mercado com a nossa dimensão e com a dimensão dos nossos operadores, fica ainda menos evidente a rentabilização dessas soluções”.

Mário neves destaca, por exemplo, a constituição de um conjunto de carteiras com características ou tipologias muito normalizadas, “provavelmente definidas localmente, dadas as especificidades do mercado. Este é mais um fator que se traduz num maior investimento e cujo volume de negócio associado não é muito evidente. Isto vai obrigar à concentração da prestação de serviços e ao aumento da especialização dos operadores. Por um lado, os criadores de produto, por outro, os distribuidores. Os custos de controlo e monitorização de um modelo livre seriam muito elevados e dificilmente fariam sentido dada a nossa escala”.

Com a perspetiva de uma entidade estrangeira com sucursal em Portugal, Joana Frade refere que a aplicação de DMIF II, neste contexto, é “um desafio de enormes proporções”. Na entidade com a qual colabora, a implementação do projeto deu-se em duas fases. Primeiro, com a criação de uma ‘mega equipa’ central à qual foi dada a regulação em bruto, sem ‘desvios e interpretações locais’. Posteriormente, “depois de assentes as bases da implementação geral, intervêm os especialistas locais de cada uma das jurisdições envolvidas que acrescentam ao trabalho base os requisitos que acrescem em cada jurisdição”.

Existem, segundo a especialista da sucursal nacional do Credit Suisse, especificidades a nível nacional que exigem uma abordagem diferente de grande parte da Europa. “As regras europeias em termos de classificação de clientes e estabelecimento de perfil estão desenhadas, tipicamente, para a situação mais comum de uma conta associada a um cliente singular. No caso português, no entanto, há a tradição das pessoas manterem contas conjuntas e as regras não estão completamente definidas para estes casos, característicos do sul da Europa”. Nestes casos, diferentes titulares poderão ter diferentes perfis de risco e de investimento. “São questões com que temos que lidar localmente, e que nem sempre são fáceis de explicar aos nossos colegas de outras regiões”.

Por fim, Joana Frade acrescenta uma nota relativamente a alguns paradigmas comportamentais que considera que se irão modificar, nomeadamente refletido no aumento geral do requisito dos clientes para que sejam classificados como investidores profissionais (profissionais a pedido). “Na minha perspectiva este é um efeito um bocado perverso da regulação. Na interação com clientes de retalho cujo nível de sofisticação  é um pouco acima da média, vemos que muitos não se conformam com as limitações impostas e este tipo de classificação poderá ser vista pelo cliente como uma forma de contornar a realidade regulatória. Há que verificar se cada cliente deve ou não ser classificado de uma forma que faz com que opere sob um menor nível de informação e proteção”.

Mário Neves, confrontado com o tema do research unbundling, destaca que “era muito importante para a clarificação da origem da remuneração da prestação de serviços esta separação entre os custos de research e os custos de execução. E, mais uma vez, a escala é preponderante nesta matérias. Uma das dúvidas que se levanta e vai permanecer é a forma como conseguiremos fazer entender aos investidor a totalidade do valor que paga pela prestação de serviço. Mas o caminho evidente é o esmagamento de grande parte do mercado e, nos segmentos mais baixos, mesmo que recorramos a soluções mais automatizadas vai ser difícil de manter a consistência e a conformidade da informação prestada”.

Já no que se refere ao conhecimento e competências exigidas aos profissionais no âmbito da DMIF II, o sócio da Uría Menéndez, Pedro Malaquias, realça a necessidade de assegurar que “os colaboradores têm todos os conhecimentos e competências necessárias para a prestação de um serviço adequado, mas também assegurar uma política de formação e comprovação desses conhecimentos”. Para isto, a lei define um mínimo de horas de formação a que cada colaborador está sujeito, conforme a sua função no intermediário financeiro. “Mas é verdade também que a regulação permite que esta formação seja feita de forma muito flexível, muito embora esteja sujeita ao dever de demonstração da adequação”. Pedro Ferreira Malaquias destaca, contudo, uma exceção para o caso em que os colaboradores “estão a trabalhar sob a tutela de um profissional que cumpre os critérios de conhecimento e competência e que pode supervisionar e acompanhar o trabalho desenvolvido por esse colaborador”.  Por fim, o advogado levanta o tema da experiência profissional, e um mínimo de seis meses é outra das exigências da regulação, nomeadamente “a capacidade do pessoal para prestar serviços relevantes, demonstrada com êxito através de experiência profissional anterior”.

Mário Neves termina as intervenções no painel com o tema da remuneração dos profissionais de investimento. “Deve existir um equilíbrio entre a componente fixa e variável da remuneração. A remuneração com base num conjunto de critérios que envolvam a prestação global do colaborador nos serviços que presta, e com alguns indicadores específicos para cada segmento de produtos com que trabalha ainda se pode integrar. Já a remuneração direta a partir dos produtos que coloca é estritamente a evitar. É muito arriscado”, conclui o diretor de compliance do Millennium BCP.