O Gigante Adamastor, o Velho do Restelo e o Bicho dos Mercados

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Vítor Duarte

Nos últimos anos em Portugal muito se tem falado da importância dos mercados, como se estes personificassem o cruel Adamastor que mais uma vez se agigantou em desfavor do povo português. Apesar de alguns dos setores socioeconómicos e algumas sensibilidades políticas do país, ainda não terem devidamente assimilado que vivemos há décadas numa economia de mercado, esta realidade tem permitido financiar e garantir a própria democracia, assente num modelo regulamentado e cada vez mais integrado num espaço económico único na Europa, a União Monetária.

Ao longo das duas últimas décadas, utilizámos os mercados para financiar o crescimento económico através do endividamento externo da nossa economia, tendo resultado num aumento da dívida sem precedentes, que terminou no já célebre plano de resgate.

O plano de resgate da troika com todos os méritos e defeitos, foi imposto pelos nossos credores como contrapartida para continuarem a garantir o nosso financiamento, uma vez que, simplesmente os mercados deixaram de confiar em nós... Mas este empréstimo da troika teve como condição o ajustamento da economia portuguesa de forma a que se tornasse mais competitiva e simultaneamente, dotada de capacidade para inverter a tendência do insustentável endividamento externo, através da geração de superavit da balança de transações correntes e de superavits primários nas contas públicas.

Após um período de grandes sacrifícios que atingiram, tanto o setor privado como o público, faz sentido reavaliar o esforço, sabendo que nem tudo foi bem feito, mas vale a pena também não ignorar, que em circunstâncias muitas vezes adversas, o que foi feito, foi realmente eficaz. Foi devolvida a autonomia ao país, quando poucos acreditavam, e restituímos a credibilidade para nos financiarmos novamente nos mercados com taxas de juro extremamente baixas.

É certo que contámos com a ajuda providencial de uma verdadeira política programática do Banco Central Europeu, mas também todos sabemos sem exceção, que só beneficiaremos dessa política enquanto continuarmos a cumprir com a nossa parte. Esta é uma lógica do mercado totalmente irreversível, pois a génese da devolução da confiança a Portugal é a reversão da tendência do aumento da dívida pública e o alcance sustentado de superavits primários, sendo estes pontos o corolário para que as agências de rating restituam de novo o estatuto de Investment Grade a Portugal.

O nosso modo de vida assenta há décadas nesta economia de mercado, que pode ter por vezes contornos mais liberais ou menos liberais, mas no essencial se resume a que “não basta parecer para usufruir da confiança, é preciso merecê-la”. Hoje, o desafio em Portugal é entender o que está na base do pretenso desconhecimento do funcionamento dos mercados, como se fossem estes os responsáveis pelos nossos erros, ou porque simplesmente, personificam os grandes agiotas que nos querem extorquir dinheiro a todo o custo.

Esta disfuncionalidade da interpretação dos mercados cinge-se a uma lógica do insólito “faz de conta”, mas ainda mais grave, expõe cruamente o enorme défice de literacia financeira neste país, onde o Velho do Restelo ainda apregoa que a cobiça de fama, glória e riquezas serão o desastre do povo português.

Existe um gap enorme de compreensão sobre o significado do investimento em ativos financeiros, onde para muitos cidadãos os instrumentos financeiros não são nem um reflexo da saúde das economias, nem traduzem a capacidade dos agentes económicos financiarem o crescimento económico e gerarem valor, mas cingem-se apenas a meros instrumentos associados à especulação e ao jogo. Por outro lado, ainda persiste a ideia displicente de que contrair dívida é sinónimo de pagar despesas, ou seja, não serve para gerar riqueza, mas sim para acabar em mais dívida, para depois se reestruturar…

Estas assunções são infelizmente muito mais frequentes do que se supõe, e inclusive, são partilhadas em fóruns onde já não anteciparíamos este tipo de análise retrógrada e embebida em modelos económicos obsoletos, constituindo-se num dos maiores obstáculos ao desenvolvimento sério de condições para o crescimento e desenvolvimento económico em Portugal.

A nossa maior exigência é de garantir que o nosso modelo económico seja suficientemente transparente para que o seu funcionamento seja percetível por todos os agentes económicos, sendo com isso capaz de neste mundo global concorrer pelo capital, porque é esta a fonte de energia que cria o emprego e gera a riqueza. A única forma de se usufruir internamente dessa fonte e de a colocar ao dispor do empreendedorismo, é através da criação de condições estáveis para atrair esse mesmo capital, procurando fixá-lo e não afugentá-lo.

Enquanto recearmos o Gigante Adamastor, escutarmos o Velho do Restelo e enxotarmos o Bicho dos Mercados, nunca mais iremos ultrapassar este gap de literacia financeira. Sem este exame de consciência, será muito difícil tratarmos dos problemas reais do país e dos desequilíbrios financeiros que nos assolam, tanto ao nível coletivo como individual, uma vez que este gap não é mais do que o profundo anacronismo de quem não sabe do que efetivamente os mercados tratam e para que servem…